“Lixo” é, surpreendentemente, uma ideia moderna. Claro, os animais sempre criaram resíduos, mas quando um esquilo faz cocô na floresta, torna-se um insumo do qual a natureza pode se beneficiar. Da mesma forma, durante a maior parte da história humana, nossos resíduos foram úteis para a natureza: o miolo de uma maçã, o dióxido de carbono que exalamos, nosso corpo e excrementos, até mesmo nossos produtos — como a madeira de uma cadeira ou o algodão de uma camiseta. Você poderia descartar tudo isso em uma floresta e a natureza faria uso de tudo isso.
O lixo, como o conhecemos hoje, entrou em cena cerca de 75 anos atrás. Fomos totalmente seduzidos pelo novo conceito de “vida descartável” que nos foi trazido através dos produtos à base de plástico. A descartabilidade era conveniente e barata. O que mais poderíamos querer? Demorou cerca de 20 anos para percebermos que esses novos materiais que estávamos jogando fora estavam se acumulando ao nosso redor.
Notamos esse problema pela primeira vez no lixo. Surgiram as leis de descarte de resíduos, então o primeiro Dia da Terra em 1970 deu origem ao movimento ambientalista moderno com o qual nasceu a reciclagem moderna. Mas a reciclagem, embora seja uma parte importante da economia circular, simplesmente não conseguia acompanhar nosso ritmo de consumo.
Até recentemente, houve pouco progresso. Mas o movimento dos anos 70 renasceu. Cercado por mais lixo do que nunca, e com a internet para levar essa realidade para longe, tornou-se impossível ignorar os efeitos de nossos padrões de consumo e descarte no planeta.
O coração da questão
Ninguém diria a você que está feliz com o estado atual das coisas: plástico se acumulando em aterros sanitários, acumulando-se em correntes oceânicas gigantes e degradando-se em microplásticos que foram encontrados em nosso sangue.
Mas nossa economia de circuito aberto é motivada inteiramente pela conveniência e maximização do lucro. Vejamos cada parte interessada:
• CONSUMIDORES: Preço, qualidade e marca do produto ainda estão bem à frente do impacto ambiental na hora de escolher o que iremos comprar. Estamos acostumados com a conveniência e os preços baixos dos produtos descartáveis disponíveis para nós hoje. Tendemos a reciclar apenas se for conveniente ou se recebermos um incentivo, como as garrafas retornáveis ou outros sistemas de devolução. Não há leis que nos digam que devemos reciclar, e a ideia de ser legalmente obrigatório reciclar parece até ridícula. Ironicamente, não somos multados por jogar lixo? Sim, às vezes multados ao extremo: em 2015, um homem em Cingapura foi multado em $ 15.000 por jogar pontas de cigarro pela janela.
• FABRICANTES E REVENDEDORES: Durante a maior parte da história, os produtos foram feitos para serem reutilizados ou consertados. Agora, as empresas podem inventar quase tudo e vender sem qualquer tipo de plano de fim de vida. Eles só precisam se concentrar em produzir e vender. E eles sempre optarão por maximizar os lucros, o que inclui abastecer o consumo. As marcas gostam de investir recursos para expandir suas ofertas de maneira não canibal. Por exemplo, uma empresa de shampoo adiciona condicionador à sua linha de produtos, uma empresa de sabão em pó adiciona amaciante de roupas, uma empresa de pasta de dente adiciona enxaguante bucal. Até recentemente, não havia incentivo para usar material reciclado na produção ou garantir que produtos ou embalagens fossem reutilizados ou reciclados.
• RECICLADORES: A reciclagem é um negócio com fins lucrativos. Os recicladores não têm responsabilidade legal de reciclar nada – eles só aceitam materiais dos quais possam lucrar. Isso geralmente inclui itens como latas de alumínio ou plásticos nº 1 e nº 2. Quase tudo pode ser tecnicamente reciclado; apenas não é tradicionalmente lucrativo fazê-lo.
Como os fabricantes desejam aumentar as margens e seus consumidores desejam preços baixos, eles escolhem as opções de embalagem mais baratas – geralmente materiais altamente descartáveis e difíceis de reciclar. A maior megatendência em embalagens é, na verdade, a redução de custos, o que remove ativamente o valor da embalagem, tornando menos desejável para os recicladores coletarem.
A conveniência impera
Embora o progresso esteja sendo feito, obviamente ele não é suficiente. O crescimento na geração de resíduos está superando a evolução na infraestrutura de gerenciamento de resíduos. O mundo está criando o dobro de resíduos plásticos do que há 20 anos atrás, e a grande maioria é enviada para aterros sanitários ou mal administrada (contaminando o meio ambiente).
As empresas têm cada vez mais tomado a iniciativa de reduzir, reutilizar ou reciclar suas embalagens,mas a maioria não está no caminho certo para cumprir seus compromissos. O uso de plástico virgem em embalagens aumentou (2,5% entre 2020 e 2021).
Os consumidores querem fazer a coisa certa, mas a conveniência impera e o custo de vida em crise não está ajudando.
Também temos que mencionar eventos recentes. Em 2019, as proibições de importação de resíduos pela China e outros países fizeram com que os mercados finais de lixo plástico desaparecessem. Em 2020, a COVID levou a um grande aumento no uso de descartáveis (como EPI – Equipamentos de Proteção Individual). E agora, a crise energética causada pela guerra na Ucrânia impôs enormes obstáculos à indústria de reciclagem.
Reciclagem ainda é um desafio
Grandes avanços estão sendo feitos na inovação de embalagens para eliminar materiais indesejáveis e fazer a transição para materiais aceitáveis pela coleta seletiva tradicional ou outras alternativas. Embora isso seja um progresso, mudar o tipo de material resolve apenas uma peça do quebra-cabeça. A prática da reciclagem ainda é um desafio, dada a insuficiente infraestrutura de coleta e processamento.
O uso de conteúdo reciclado pós-consumo (PCR) tem sido um foco, mas o fato é que simplesmente não há PCR suficiente disponível para atender à demanda. E a transição para reutilizáveis é lenta, com as organizações preocupadas com a adoção pelo consumidor e não dispostas a apoiar de forma significativa os pilotos de reutilização.
Os governos começaram a intervir (por exemplo, com os padrões de reivindicação de reciclagem,proibições de embalagens e leis de responsabilidade estendida ao produtor [EPR]). Mas o progresso aqui também é lento e os mandatos nem sempre significam mudanças reais quando a infraestrutura subjacente não é considerada. Por exemplo, sem PCR suficiente para circular, a obrigatoriedade do uso de PCR causará uma lacuna ainda maior entre oferta e demanda.
Política leva tempo
Pense no sistema atual como um rio. Como os rios correm? Com o caminho de menor resistência (ou, para nossos propósitos, o caminho da conveniência e do lucro). Não vamos conseguir forçar o rio a subir a montanha acima, então temos que respeitar sua trajetória natural. O que podemos fazer é regular o fluxo (legislação) ou induzir a água para seguir por outro caminho (por outras opções convenientes e lucrativas).
Em última análise, é tudo sobre o dinheiro. A sustentabilidade precisa se tornar uma prioridade comercial. Isso será alcançado por meio de uma legislação que incentive escolhas sustentáveis e leve ao investimento em infraestrutura — e por consumidores que demonstrem sua preferência em suas decisões de compra.
Política leva tempo. Enquanto isso, precisamos de ação sobre os compromissos das organizações. Aqueles que fazem da sustentabilidade uma prioridade agora estarão prontos para as obrigatoriedades inevitáveis e obterão uma vantagem competitiva.
Enfrentar a crise dos resíduos será realmente um esforço coletivo, com cada segmento da sociedade tendo um papel a desempenhar. Só teremos sucesso se nos comprometermos com nossos papéis e nos responsabilizarmos mutuamente. Mas a boa notícia é que, desde que o lixo seja novo, podemos considerá-lo solucionável. Precisamos tornar nossos rejeitos algo que a natureza queira novamente.
Com tudo isso dito, a verdadeira solução é reduzir a quantidade de lixo na fonte. Todos nós precisamos votar por um futuro melhor comprando menos.
Tom Szaky é fundador, presidente e CEO da TerraCycle, uma empresa de reciclagem com sede em Trenton, NJ, com a missão de “eliminar a ideia de lixo”. Szaky também é o fundador da Loop, uma plataforma global de reutilização habilitada por uma coalizão multissetorial de fabricantes, consumidores e varejistas unidos na ideia de eliminar a ideia de lixo. Os parceiros da Loop incluem Beiersdorf, Henkel, Procter & Gamble e Unilever.